O meu caminhar está mais pesado e espaçado. A palheta que levo na boca torna o meu assobiar mais sereno e melódico, destrona qualquer melancolia causada pelos caules finos das plantas ribeirinhas que se deixam levar, hirtos, numa bela dança pelo sopro do vento norte a galope. O terreno é acidentado. Na verdade, ainda não tive tempo para o pavimentar. Está assim desde o dia em que enfim…
No horizonte o sol parecia um quarto de laranja cortada pelo telhado da nossa velha cabana que nunca cheguei a terminar. Dói só de olhar. As memórias de um Amor vivem aqui debaixo desta cabana. Recordo-me, penosamente é um facto, de quando fugíamos de casa quando a lua cheia estava já bem no alto e os nossos pais já dormiam profundamente. Éramos dois fugitivos vigiados pelas estrelas. Dois fugitivos loucamente apaixonados, eternamente prometidos um ao outro pelos deuses que vivem nas margens deste rio. Era esta a nossa paragem. Atrelado a nós trazíamos sempre a frescura do ar deste vento que faz mover moinhos, e nos fazia mover a nós. O Pequeno barco, do velho que um dia deixou esta casa abandonada, abarcou muitas vezes connosco enquanto navegávamos nesta pequena lagoa onde o rio descansa. Nele uma vez escrevinhei com um pau o teu nome. Ainda hoje aqui está. Pensei com toda a minha inocência que isto poderia, talvez, perpetuar a nossa relação. Em vão, como sabes.
Neste alpendre desgastado, também ele, pela idade e quem sabe pela minha falta de sorte, fizemos a lua, o sol, as nuvens, e amor. Amor, pensei eu. Fui enganado por sentimentos mesquinhos que adorava sentir. Sim esses mesmos, quando te senti as entranhas que me aqueceram loucamente o coração, quando o teu toque fazia libertar em mim gemidos de prazer abrasivos como as cinzas de um grande fogo, quando o prazer evidente nos teus olhos azuis mais lindos que o mar, mais claros que o céu na primavera, mais vibrantes que o cantar de um tenor me sufocavam num oceano sem fim de paixão. Era, realmente era. Agora no alpendre só tenho a minha guitarra. Aquela que tocou, amiúde, para ti. Uma corda já se partiu e bateu-me. Ironicamente foi o que me fizeste. Partiste e ainda me esbofeteaste a alma. Infelizmente não és uma “corda” recuperável. Infelizmente? Peço desculpa, felizmente.
Ainda agora brincas comigo. Sinto-te todos os dias sobre mim a abraçar-me como se não me quisesses deixar. No outro dia estava no alpendre e julguei que me tivesses beijado. Nem aí em cima, para lá das estrelas e do cosmos misterioso, na terra onde todos vivem eternamente, me deixas em paz.
Bem, resta-me o meu passado escrito com tinta indelével que tu própria criaste, pintaste, desenhaste, rabiscaste, engendras-te. E agora os meus dentes rangem como as portas velhas, os músculos tremem como o teu cabelo em desalinho, os dedos estalam como castanholas sevilhanas, as estações do ano entram em alvoroço e turvam a água que deixaste diáfana como aljôfar.
A vontade de viver aparece serôdia, quando aparece, múltiplas vezes não chega a ser hipótese. Pois, nem eu compreendo o que digo. A minha sabedoria é cega surda e muda e vive no inverno, isso te garanto. Mas sabes, gostava de voltar a sentir que 1 mais 1 podem ser 3, e que a totalidade é maior que a soma das partes, que o impossível pode ter um “se” e que todas as situações deixam de ter um “mas”, que os rios nascem no mar, e que a lua pintámo-la nós nas noites em que os besouros pousavam na nossa cabeça como se fossem a nossa consciência. Enfim, já percebi. E se eu sorrir? Virás tu perseguir-me e beijar o meu nariz como fazias? Ou vais deixar-me energúmeno e néscio como os salmões que apanho para sustento?
Que raiva. Fazes-me sentir um sortudo na vida, e acreditar que me abandonaste aqui neste mundo cruel com Amor. Até me fazes achar que no mundo há pessoas bem piores do que eu que todos os dias lutam com a vida ao contrário do que faço por ter desistido. Porque me fazes cair em utopias e mexericos de que morreste a dizer o meu nome e me Amavas? Porquê que eu sinto que te Amo? Explica-me este deboche.
~ aguenta coração
Há 8 anos