quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

"...O rumo..."





"...que é feito dos porquês, do como, e porque não?


usares de quando em vez um ponto de interrogação?..."








Seguras-te com força contra o meu peito e fechas os olhos numa tentativa concomitante de sentir mais do que o meu corpo, mais do que o calor que emano junto á tua pele, mais do que o bater gritante do meu coração em colapso na tua presença. Não demoro a entender que a paz com que te alimento te adormeceu. A lareira ilumina o teu rosto dando-te um ar nocturno irresistível. O teu respirar seguro de si e a tranquilidade com que me devoras a atenção impedem-me de te beijar e ceder á vontade de te ter a todo o momento. Pergunto-me se conseguirás entrar no meu mundo dos sonhos. No mundo onde me agarras quando sentes que a tua paixão está em fase de rescaldo iminente, onde sempre que me beijas te dás a mim para que cuide de ti num espaço temporal mais largo que o “para sempre”, onde o teu olhar me oferece um amor que os Deuses invejariam se o conhecessem, matariam para o sentir, e morreriam ao senti-lo. Conseguirás tu interpretar as memórias sonhadas ou quem sabe fazer uso dos meus sentidos para vivê-las? Irás tu algum dia sentir as réplicas dos tremores e arrepios, de frequência aleatória, que sinto quando me falas de coração nas mãos? Sentir o frio colossal que me invade, com pontadas em coordenadas corporais distintas, quando as tuas mãos percorrem o meu corpo e a tua respiração se alastra no meu ouvido causando sensações em tudo semelhantes às de uma hipnose controlada pela brisa suave que, qual força da natureza, crias do nada? Ou sentir o calor mais reconfortante que algum dia possa existir quando a tua língua se escapula numa aventura desenfreada de exploração do meu pescoço salgado por suores que, na sua rebeldia, migram para atmosferas de menor desejo, e terminar com um olhar capaz de estalar a alma mais impenetrável, de a rasgar por dentro e tirar de todo um ser uma razão de ser? Se nunca o sentires, lembra-te, tudo não passa de um sonho.
Sinto-te a recostares-te em mim em busca de maior conforto, e trago o cobertor para mais perto do teu pescoço. Beijo-te as maças do rosto, e faço os meus dedos mimarem a tua pele, enquanto os meus lábios fogem para os teus para um beijo do qual jamais te lembrarás mas quem sabe o teu coração decorará. Sinto o teu cheirinho. Ele invade-me com anseios de outras vidas que tornam este mundo tão insignificante perante ti. Perdoa-me tu a minha pequenez, deixas-me pedir-to?

sábado, 8 de outubro de 2011

"...Desregrado..."



"...Como a noite amanhece, qualquer santo elouquece;

Quando acordas queres amar, é que o mundo faz-te frio,

como a água quer ser mar, a chuva quer ser rio,

se és semente queres crescer mas sem água vais secar,

vais ser tu a ir buscar o que o mundo não te der..."










De toda uma panóplia de escolhas foi a tua mão que decidi agarrar. Fiz-te andar no passo “apressado” tão típico em nós pelo passeio da marginal vila-condense. Aproveitei o vento norte, ainda apático apesar do Outono mais que instalado, para me impulsionar. De um lado, os chorões que cresciam nas dunas clamavam ao vento que servisse de maestro nas suas canções melancolicamente segredadas ao céu; do outro, imperava o mar que de mão forte se sobrepunha aos rochedos e na rebentação espalhava pelo céu gotículas de água numa tentativa desesperada de fazer o sol beber daquilo que não podia.
O forte de são João ficava alicerçado logo em frente, e o estímulo era tal, a vontade era tal, a força era tal, que decidi trepar até ao janelão de vigília contigo. Escolhi o rochedo onde pôr o primeiro pé. Senti firmeza e continuei. Apercebi-me do teu receio, sorri e dei-te a mão. Não abriras a tua boca nem um segundo, mas o tremor da tua mão revelava o nervoso miudinho que aparecia sempre que me vias, e o teu olhar a capacidade de me seguir para onde quer que fosse. No fundo esta era apenas mais uma caminhada em que eu estava contigo e tu me seguias. Sentis-te confiança e pisas-te o rochedo para subir. Olhei, reflecti, e escolhi o segundo ponto de subida. O chão ficara agora significativamente mais longe, mas a tua cabeça inclinava-se para cima ao meu encontro, e o teu sorriso respondia-me a toda e qualquer incerteza sobre a tua capacidade de me alcançar. Era, contudo, o sorriso capaz de me fazer cair a qualquer momento tal era a capacidade de abstracção que provocava em mim. Agarraste-me com força titânica e subis-te mais uma vez. Voltei a avaliar a parede de rocha antiga, desgastada pela maresia, e descobri a forma de subir ao janelão. Pus os teus braços na minha cintura para me acompanhares. Senti-os firmarem-se contra o meu corpo e um frio momentâneo percorreu-me a espinha como se tudo dentro de mim tivesse sido curado de uma enfermidade desconhecida, de um veneno astuto, ou de um passado oculto. Fechei os olhos, abanei a cabeça e trouxe até mim a realidade, novamente. Usei os braços para me erguer a mim e a ti para cima do janelão. Nunca hesitas-te em te agarrares a mim mostrando uma confiança inabalável de que poderia chegar mais alto levando-te comigo onde quer que chegasse. Sentei-me recostando-me para trás, ficando seguro apenas pela força braçal. Olhei para o horizonte que começava finalmente a engolir o sol degustando-o lentamente. Conseguia ver o farol onde adormecera em tantas tardes embalado pelo voo rasante das gaivotas, e por um assobiar que saia de mim em honra ao meu subconsciente eloquente. Por detrás do rochedo ficava a ”praia do forno” onde tantas vezes havia ido ver o mar contigo. Pareces-te adivinhar o que pensara. Levas-te a tua cara ao meu pescoço e senti-te a cheirar-me avidamente. Agora a fragilidade foi minha. Fechei os olhos e perdi noção do mundo em meu redor. Fui abalroado por réplicas de momentos que me havias dado a provar. O meu nariz reproduziu o teu cheirinho, e a minha pele sentiu de novo a tua pele embebida em suor nosso. Os meus poros abriam-se á passagem da tua mão com toque suave, os meus lábios saboreavam os teus, deixando escapar uma respiração proveniente das profundezas da alma, coberta de fuligem e mossas que regeneravam sempre que a tua respiração ecoava no meu ouvido. Entrelaçava os meus dedos nos teus e o meu coração sabia por quem tinha de bater. O meu corpo reagia a todo e qualquer movimento teu na minha direcção, mostrando que te conhecia muito antes de eu próprio me conhecer.
Senti-me obrigado a abrir os olhos quando a tua mão se fez notar, agarrando-me a camisola com força. Sabia que eras capaz de sentir o meu coração crepitar. Apercebi-me que tentara desde sempre descobrir o segredo do teu poder sobre mim. Puxaste-me contra os teus lábios e beijei-te não escondendo que inspirara com todas as forças que me restavam. Sou capaz de jurar que paras-te o tempo por segundos, fazendo-o voltar ao normal apenas quando sussurras-te que me Amavas ao ouvido. Mas foi assim que entendi. Afinal, o teu segredo é não ter segredo.

domingo, 21 de agosto de 2011

"...Desprovido - Part II..."







A melodia prolongou-se por tempo indeterminado até que o silêncio se instalou causando o constrangimento habitual. O silêncio soa como o escuro, em ambos não se sabe o que está a acontecer, nem há a certeza de se se vai cair ou apenas andar em frente. Curiosamente deparava-me com ambos. Os olhos encerrados traziam-me a insegurança da escuridão, e o silêncio apenas o mistério do que ai viria. Sentia aquela mulher em meu redor, desconhecia onde, mas os olhos recusavam-se a abrir, talvez por não precisar de os abrir para a conhecer e decifrar como as palmas das minhas mãos, ou porque me trazia a fragilidade ao de cima, a fragilidade de querer alguém e não ter forças para o impedir.
Uma brisa antecipou os seus cabelos. Tocaram-me como se fossem fitas de seda capazes de despertarem os meus sentidos, capazes de os dominar. Os olhos abriram-se de novo, e a luz do anfiteatro encandeou-me. Suspeito que tenha estado tempo demais de olhos fechados, não sei quanto, mas era um efeito hipnótico irresistível. Por detrás do palco uma das portas fechava-se e apenas fui capaz de ver o esvoaçar de um vestido branco, e as pontas lisas e loiras de um cabelo que de imediato reconheci. Ela sabia como me chamar sem qualquer palavra. Sabia o que fazer. De imediato as minhas pernas ergueram-se e corri. Saltei o palco com uma agilidade impensável tornando aquilo tudo menos um obstáculo. Abri a porta e vislumbrei-a num caminhar célere pela “theater district”, decidi, sem sequer pensar, segui-la até saber qual seria o ponto em que se encontrariam os dois em sincronia de uma vez por todas. Seria, contudo, capaz de esperar uma vida por esse momento. A adrenalina tomou-me de novo bombeada em doses lancinantes. Fizemos de Nova Iorque uma cidade pequeníssima, uma cidade capaz de caber no “Portugal dos pequeninos”. A “42nd street” foi corrida de lés a lés e a multidão perdeu substancialmente a importância habitual. Agora não se reparava na cor de pele, nos turbantes na cabeça, nos sotaques distintos, nas ruas tornadas passerelles para mulheres que expiram moda e inspiram ares recheados de conteúdos supérfluos banhados em ilusões (em que tão facilmente todos caímos), nem tampouco no barulho ensurdecedor que para tanta gente serve de única companhia. Em suma diria que nunca Nova Iorque havia sido ou estado tão quente como naquele momento. “Hell´s kitchen” ficava logo ao fundo, e a brisa do oceano fazia-se sentir com uma intensidade que ficava muito aquém daquela que eu próprio era capaz de produzir. A marginal era rasgada pela “12th avenue” e o arvoredo fazia sombra aos idosos que por ali caminhavam como ritual. Ela parou. Senti-me como se batesse numa porta por não saber se deveria quebrar a distância de segurança que havia criado. Criar distâncias havia sido um hobbie ao qual não sabia renunciar em toda uma vida, decidi então mudar isso. Continuei em passo medido a régua e esquadro até conseguir ver a cor azul das íris dos olhos dela. Ela aproximou-se. Do lado direito o oceano era mais pequeno do que os sentimentos explosivos que ali se afirmavam. As suas mãos tocaram o meu peito e o seu rosto firmou-as ainda mais vigorosamente contra mim. Os meus braços sabiam quem ela era por algum motivo e quiseram recebê-la mais perto e apertada do que jamais alguém havia estado. A brisa soltou um novo sopro e fez cair umas quantas centenas de flores das árvores circundantes que se apressaram a cair em nosso redor. Sentia o calor emanado pela pele dela, e os meus lábios saborearam os seus cabelos num beijo despropositado. Pela primeira vez o silêncio quebrou-se.
-“Sabia que virias”, disse ela conseguindo um eco criado pela minha falta de entendimento. “Só poderias ser tu!”

sábado, 9 de julho de 2011

"...Desprovido..."








Uma melodia arrepiante invadiu o meu corpo sem autorização. Uma melodia capaz de rachar a maior das tristezas. O piano, claramente, sufocava perante as dedadas vigorosas de alguém que sem falar conhecia todas as minhas necessidades.
Continuei a caminhar até onde a “42th street” se encontra com “Times Square”. A melodia esvoaçava pela atmosfera como os inúmeros pássaros que vêm, caprichosamente, do “central park” fazer aquilo que é o reconhecimento em voo controlado, que curiosamente é normalmente a forma de viajar da minha mente e sentidos.
O som prolongava-se por entre os edifícios de altura considerável tão característicos da cidade, que serviam na perfeição para uma acústica vibrante. Contudo, ninguém parecia abstrair-se da música do quotidiano, a música do fumo que ascende como trepadeiras em casa de campo, das sirenes que marcam ritmo quais maestros, do caminhar imperativo de milhares de pessoas que representam o mundo e se misturam numa massa tão fria e homogénea, e do som dos afazeres, da celeridade, que diga-se, daria um belo de um sapateado.
Persegui os meus instintos alimentados com doses irregulares de adrenalina, ou se calhar segui apenas a curiosidade que paulatinamente me enchia por dentro. Descobri o epicentro: Broadway. A rebeldia veio ao de cima. Toda a gente sabe que a única forma de entrar na Broadway sem ser visto é pela porta das traseiras. Times square fica para trás e a theater disctrict é pequena demais para a vontade imparável que sinto de encontrar quem me descobriu.
A porta das traseiras. Tal catedral do teatro com uma porta dos fundos em contra-placado? Curioso como até as coisas grandes têm em si próprias coisas de menos valor (não seremos todos nós assim?). Entro na porta semi-aberta como um menino envergonhado enquanto pratica uma das suas malandrices, e entro na lateral de um enorme anfiteatro. Pilares capazes de segurar o céu, paredes revestidas com salvas de mil públicos, e uma plateia dançante ao som da música do piano. Quem o tocava não sei ver. Dedos finos, crepitantes, capazes de criar, cabelos loiros esvoaçantes por ventos imaginários ritmados pelos movimentos ondulados do corpo, gotas de suor que sabiam a águas de mil mares inexplorados. Um olhar encontrou-se com o meu e a vergonha subiu-me as maçãs do rosto. Inesperadamente a música continuou. Sentei-me numa das cadeiras da primeira fila. Senti o ribombar dos tambores e o meu coração dançou valsas de Amor, a paixão insurgiu-se do nada e sem querer deixei transparecer a fragilidade há muito escondida. Fiquei ali a descobrir que são a verdade e o Amor quem faz mover o mundo, qual roda-viva.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

"...Ensaio..."




"...finit corunat opus..."







És senhora de um mundo a teus pés. Nesse mundo, um veleiro era a nossa plateia exclusiva para o espectáculo mais fantástico que se podia imaginar, deveras. Davas-me a mão até ficar quente a ponto de gotejar suor. Cortejavas-me com olhares provocadores, respirações ao ouvido guardiãs dos segredos de prazeres milenarmente descobertos, e aproximações incitadas por leves tremores que a paixão criava em ti sem que pudesses contrariar. O espectáculo começava e o céu passava a ser cenário de uma chuva de luzes ancestrais. Havia quem lhe chamasse estrelas, mas nós não. Eram milhares de milhões de purpurinas vivas que reflectiam Amores de todos os mundos em redor, ou então apenas queríamos ser personagens principais nalgum momento da vida. O centro das atenções era contudo o branco imperial e excêntrico da lua, que deformava os olhares tornando-os exorbitantes e completando o significado de espelho da alma que alguém desconhecido um dia afirmou existir. O vento soprava música ambiente fazendo acreditar até os mais cépticos como nós que existia algo tão bom quanto o verbalizar dos sentimentos á pessoa a quem oferecemos o mesmo ar para respirar. Os aplausos vinham do mar, e da audiência assídua das ondas encrespadas em rochedos inexplorados, criando um ruído ensurdecedor e terno, tal era o paradoxo. De uma perspectiva mais longitudinal, a mãe natureza não passava da falta de razão. Não foi ela irracional ao criar-nos? A visão era interminável, até ao dia em que o teu coração de mau grado se fartou da simplicidade e do melhor que podia ter. Cedeu á luxúria da vida, ao dourado reluzente da ilusão, e acreditou que tudo que brilha é ouro. O veleiro baloiçou, as bandeiras hasteadas quebraram, e o mundo suspendeu o seu rito de movimentos cíclicos e divinalmente desenhados pelo arquitecto divino a quem tão poucos premeiam com o mais simplório dos méritos. Desenhas-te no ar uma tentativa de fuga arriscada mas determinada a qual eu passivamente deixei decorrer. Tentas-te recolher a âncora com uma mentira tal era o desespero e tendo entendido a fragilidade e a solidão em que vivias deixei-te criar pela primeira vez uma coisa só tua…a tua mais bela e astuta miragem. Tentas-te fazer uso das mais complexas artes de navegar mas nem o facto de bolinares te deixou avançar para paragens mais quentes que as minhas. Quanto mais palmilhavas para longe, mais a tua alma era minha, e menos a queria. Talvez não te perdoasse por nunca teres reparado em quem dava harmonia ao teu doce mundo. Não reparas-te tampouco que num piano lançava no ar notas que eram nada mais, nada menos, que o ritmo da tua vida, e que com notas num dó agudo e num sol a três tempos, fui maestro de algo tão grande como tudo o que a tua memória consegue lembrar-se se for capaz de se estender por apenas 3 segundos.
Agora dei autorização á mãe natureza e ao concilio dos deuses para te levarem para longe, mas destinei-te um lugar digno da tua memória. O mundo cai e levanta-se, os palimpsestos vão continuar a ser feitos, os erros não vão ser desalojados da nossa existência, nem os beijos vão ser dados todos com as mesmas intenções, e o Amor não vai ser nunca impossível de falsear. A questão é outra. Quando vai o teu olhar deixar de fazer sentido, o teu beijo largar o meu pensamento, a minha respiração deixar de ser acelerada pelo teu toque, e a tua presença valer menos que o mundo?

quinta-feira, 24 de março de 2011

"...Desconhecido..."




O navio afasta-se do cais. As gaivotas voam, deslizam, provam os ventos. Sento-me na capota do carro e o sol toca-me em sinal de solidariedade, o vento acaricia-me declarando cordialmente a sua amizade por mim, a solidão abraça-me mas de forma invulgar, com amor, com beleza. Descubro rapidamente que a foz do rio é o melhor sitio para se olhar longitudinalmente. É que também ela é o fim e o princípio. Curioso o dualismo, invulgar até. Os meus olhos fotografam a velocidades lancinantes, e os pulmões enviam o oxigénio relaxados pela falta de mérito que têm tido, ou talvez por falta de força. Desconheço todas as razões, se é que de razão se trata. Aqui simplesmente não existe história, não existe futuro, e o presente é quase residual. Hoje a folha de papel retrata uma inércia e não um movimento quase louco de paixões que me caracterizam em segredo, e que partem uma máscara preparada por anos de personalidades criadas, pseudónimos dançantes naquela sequela a que chamam vida real. Hoje digo a verdade, ainda que com destino, porque sei que essas palavras são alicerces de mundos paralelos, a uma consciência que não te vejo a ter. Vou resguardar-me de palavras porque não as tenho e talvez nos meus flashes… (a tua mão acompanha a minha deleitando-se no meu corpo embebido no teu suor, o teu beijo trespassa a alma num arrepio gélido, o teu calor solda o Amor dentro de mim e o meu olhar é a chave para tirar de ti o teu melhor, a paixão eram momentos ou movimentos tão sinuosos como as ondas do mar e que libertavam em ti os mais imprevisíveis gemidos de prazer…)… nunca mais te veja.
O tempo passa, e a vida é cronometrada com astúcia, para quem vive nesse tempo do relógio. Reduzo o meu tempo a isso mesmo, o meu tempo. O tempo do conto de fada, história tradicional, epopeia, manuscrito, papiro, o tempo dos antigos em que a vida era o consumo incessante de aventura. Lamento a indiscrição, hoje o mundo vale menos que cada um de nós, porque, em formato de glosa, quem faz o mundo somos nós.

quinta-feira, 3 de março de 2011

"...Um homem com sorte..."





A exclamação do teu olhar tramita a vontade de vires comigo seja para onde for. O mundo é pequeno para tal Amor, mas o silêncio absorve vontades, palavras, sentimentos, e é levado pelo vento fresco da orla marítima, para lugar desconhecido.
O navio afasta-se do cais e o vento opõe-se á minha partida. Se pudessem também as tuas mãos o faziam. Mas não. Ao invés de todas as pessoas, que tão vigorosamente bracejam em tom de despedida, os teus braços não se erguem. A vida é madrasta e por vezes torna-nos meros funâmbulos. Apesar disso, o teu olhar tem mais verdade do que qualquer outro, e a esperança que emanas é força da natureza.
O navio é enorme, leva-me contra a corrente, empurra-me para o horizonte, e ainda assim tu estás perto. És omnipresente diria, talvez porque és divindade na minha vida, ou só porque sem ti o mundo não seria mundo. Nem a madeira que serve de chão á proa do navio eu consigo sentir. Pensaria ser bom sinal caso fosse por estar a levitar, e flutuasse até ti. Mas tudo se resume mais uma vez a falta de força que por vezes sinto ter.
Recordo-me do primeiro dia em que te vi. Os teus cabelos ainda os cheiro, e os teus pés ainda os vejo a fazer círculos concêntricos no lago de Sanabria. Fazia sol mas o dia era gelado. Pelo menos nos noticiários, porque tu aqueces-te o meu dia. Pensei que nunca mais te veria mas felizmente não só te vi como te vivi, até hoje. Gosto de dizer que tenho de partir, mas na verdade não sei se é fuga ou êxodo. Sei o que deixo para trás, isso sim. Mas a vida é feita de escolhas.
Viro costas ao beiral limítrofe do casco do navio e caminho até ao quarto, a que talvez vá chamar de abrigo. Não sei. Apenas concretizo mentalmente de que “tem de ser”.
Vou tentar escamotear o bom senso que me resta e dizer que não são os teus lábios que sinto nos meus, ou os teus braços em redor do meu peito. Vou por meros segundos esquecer que por vezes a paisagem que consigo percepcionar não são as noites em que a lareira assistiu ao mais puro Amor, em que os cobertores cobriram duas almas banhadas em suor de mil romances, e o meu corpo deixou de ser meu para se entregar a ti num falso desespero. Vou pensar apenas que vou e volto, mesmo sabendo que o fundo da questão é saber porquê que nunca parti.

domingo, 9 de janeiro de 2011

"...Meu Amor..."


"...Falta-me soltá-lo aos quatro ventos,
para depois segui-lo por onde for,
ou então dizê-lo assim baixinho,
embalando com carinho
o teu nome, meu Amor..."






Olho para ti de relance para que não repares. A tua mão aquece a minha, enquanto passeamos como habitualmente na margem do rio Douro, sendo maestro do meu caminhar. A brisa abraça-me o rosto e faz os meus olhos lacrimejarem, mas apenas o meu inconsciente se apercebe disso. O meu Pensamento, esse, está atrás no tempo pouco mais de 40 anos. Recordo-te com grande precisão. Eras a mulher mais bonita que algum dia havia visto. Os teus olhos azuis e cabelo loiro cintilavam mais que o sol aos meus olhos. A tua cintura delgada, e as formas acentuadas tornavam-te respeitosamente apetecível. E o teu sorriso…ai esse sorriso!
Lembro-me do dia em que nos conhecemos como se de hoje se tratasse. Foi num baile de verão nas ruas anexas á Sé do Porto e lá estavas tu. Dançavas alegremente, sorrindo para os teus pais que dançavam juntos ao teu lado. Mal sabias que era eu quem mais te observava. Eras de uma elegância, de uma humildade, de uma beleza incomuns. Nessa noite, os meus pés fizeram-me deslizar ao longo da rua, que servia de pista de dança, e parar junto ao teu ouvido para te segredar o convite que queria fazer há algum tempo. Nesse momento senti o teu aroma a rosas. O tecido do teu vestido era suave como penas e sentia-me capaz de ficar assim uma eternidade. Anuis-te, e só aí me apercebi que já te havia pedido uma dança. A tua cara pálida realçava ainda mais as tuas íris azuis cor do céu, e os teus lábios vermelhos como se fossem tirados de uma boneca de porcelana, e agora, as tuas maças do rosto mais encarnadas do que nunca. Dançamos horas a fio até as doze badaladas terem feito com que tivesses de te retirar. Antes de ires seguras-te a minha mão, e disseste-me o teu nome, Matilde. Sem saber o que te dizer, mantive o meu silêncio e o sorriso mais aberto e aparvalhado que algum dia havia esboçado. Foste então embora.
Nas semanas seguintes procurei-te inúmeras vezes sem sucesso. Era das poucas pessoas que tinha carro com apenas 16 anos e pensava com isso impressionar-te. Contudo, nunca te encontrei. Havia já desistido, mas ironia do destino dois meses depois enquanto entregava chapéus, cumprindo os ofícios a que o meu pai me obrigava, toquei sem saber á tua porta. Abriste-ma, e fiquei abismado. Vivias na casa mais humilde do bairro, mas contagiavas de nobreza. O teu olhar pousou no meu, e fiquei nervoso como se fosse um menino a chegar pela primeira vez á escola. Entreguei-te o chapéu para o teu pai e com um misterioso impulso convidei-te para passeares, o qual aceitas-te. Recordo-me. Fomos até á foz comer um gelado, coisa que nunca tinhas feito. Apreciei-te durante todo o caminho e a cada passo me fascinavas mais. A noite caiu quando estávamos a chegar á zona da ribeira. Havia ainda algumas crianças a saltar para o rio desde os muros e até da ponte D.Luis. Alguns repetiam desenfreados o caminho entre o cais de Gaia e a Ribeira a nado. A lua estava cheia e a tua presença dava-lhe um sabor diferente. Descemos a rampa até a margem do rio onde os barcos já descansavam. Descalças-te as tuas sandálias e mergulhas-te os teus pés na água formando círculos concêntricos. A brisa estava fresca e dava movimento ao cenário que vislumbrava. Sentei-me contigo e senti a tua cabeça tocar o meu ombro. Incrédulo olhei-te e tu fizeste o mesmo. Quase como autómatos, os nossos lábios tocaram-se e beijei-te como se fosses a única mulher na minha vida.
E foi até hoje. Fazemos este percurso todos os dias para que a velhice não nos roube as memórias mais preciosas que temos, e parece sempre como da primeira vez. Continuo apaixonado por ti como naqueles dias de juventude e aventura constante. Descobri o verdadeiro Amor sem ter de o perseguir e mantive-o todo este tempo comigo. Sei que é um Amor mais poderoso que qualquer império, mais poderoso que qualquer dificuldade.
Sentas-te na margem e semi-fundeias os teus pés como naqueles dias. Já é tarde e a noite voltou a cair como se de uma repetida curta-metragem se tratasse. Mas insistes em formar círculos concêntricos novamente. Talvez porque te façam lembrar aquele dia ou talvez porque signifiquem algo como o ciclo da vida do qual fazemos parte. Ainda assim, sempre que te vejo fazê-lo tudo que vejo é o poder que tens sobre a natureza. Tens esse dom especial. O dom de fazer serenatas ás estrelas, em silêncio.