quinta-feira, 24 de março de 2011

"...Desconhecido..."




O navio afasta-se do cais. As gaivotas voam, deslizam, provam os ventos. Sento-me na capota do carro e o sol toca-me em sinal de solidariedade, o vento acaricia-me declarando cordialmente a sua amizade por mim, a solidão abraça-me mas de forma invulgar, com amor, com beleza. Descubro rapidamente que a foz do rio é o melhor sitio para se olhar longitudinalmente. É que também ela é o fim e o princípio. Curioso o dualismo, invulgar até. Os meus olhos fotografam a velocidades lancinantes, e os pulmões enviam o oxigénio relaxados pela falta de mérito que têm tido, ou talvez por falta de força. Desconheço todas as razões, se é que de razão se trata. Aqui simplesmente não existe história, não existe futuro, e o presente é quase residual. Hoje a folha de papel retrata uma inércia e não um movimento quase louco de paixões que me caracterizam em segredo, e que partem uma máscara preparada por anos de personalidades criadas, pseudónimos dançantes naquela sequela a que chamam vida real. Hoje digo a verdade, ainda que com destino, porque sei que essas palavras são alicerces de mundos paralelos, a uma consciência que não te vejo a ter. Vou resguardar-me de palavras porque não as tenho e talvez nos meus flashes… (a tua mão acompanha a minha deleitando-se no meu corpo embebido no teu suor, o teu beijo trespassa a alma num arrepio gélido, o teu calor solda o Amor dentro de mim e o meu olhar é a chave para tirar de ti o teu melhor, a paixão eram momentos ou movimentos tão sinuosos como as ondas do mar e que libertavam em ti os mais imprevisíveis gemidos de prazer…)… nunca mais te veja.
O tempo passa, e a vida é cronometrada com astúcia, para quem vive nesse tempo do relógio. Reduzo o meu tempo a isso mesmo, o meu tempo. O tempo do conto de fada, história tradicional, epopeia, manuscrito, papiro, o tempo dos antigos em que a vida era o consumo incessante de aventura. Lamento a indiscrição, hoje o mundo vale menos que cada um de nós, porque, em formato de glosa, quem faz o mundo somos nós.

quinta-feira, 3 de março de 2011

"...Um homem com sorte..."





A exclamação do teu olhar tramita a vontade de vires comigo seja para onde for. O mundo é pequeno para tal Amor, mas o silêncio absorve vontades, palavras, sentimentos, e é levado pelo vento fresco da orla marítima, para lugar desconhecido.
O navio afasta-se do cais e o vento opõe-se á minha partida. Se pudessem também as tuas mãos o faziam. Mas não. Ao invés de todas as pessoas, que tão vigorosamente bracejam em tom de despedida, os teus braços não se erguem. A vida é madrasta e por vezes torna-nos meros funâmbulos. Apesar disso, o teu olhar tem mais verdade do que qualquer outro, e a esperança que emanas é força da natureza.
O navio é enorme, leva-me contra a corrente, empurra-me para o horizonte, e ainda assim tu estás perto. És omnipresente diria, talvez porque és divindade na minha vida, ou só porque sem ti o mundo não seria mundo. Nem a madeira que serve de chão á proa do navio eu consigo sentir. Pensaria ser bom sinal caso fosse por estar a levitar, e flutuasse até ti. Mas tudo se resume mais uma vez a falta de força que por vezes sinto ter.
Recordo-me do primeiro dia em que te vi. Os teus cabelos ainda os cheiro, e os teus pés ainda os vejo a fazer círculos concêntricos no lago de Sanabria. Fazia sol mas o dia era gelado. Pelo menos nos noticiários, porque tu aqueces-te o meu dia. Pensei que nunca mais te veria mas felizmente não só te vi como te vivi, até hoje. Gosto de dizer que tenho de partir, mas na verdade não sei se é fuga ou êxodo. Sei o que deixo para trás, isso sim. Mas a vida é feita de escolhas.
Viro costas ao beiral limítrofe do casco do navio e caminho até ao quarto, a que talvez vá chamar de abrigo. Não sei. Apenas concretizo mentalmente de que “tem de ser”.
Vou tentar escamotear o bom senso que me resta e dizer que não são os teus lábios que sinto nos meus, ou os teus braços em redor do meu peito. Vou por meros segundos esquecer que por vezes a paisagem que consigo percepcionar não são as noites em que a lareira assistiu ao mais puro Amor, em que os cobertores cobriram duas almas banhadas em suor de mil romances, e o meu corpo deixou de ser meu para se entregar a ti num falso desespero. Vou pensar apenas que vou e volto, mesmo sabendo que o fundo da questão é saber porquê que nunca parti.