domingo, 19 de julho de 2009

"A idade dos perdidos"

O meu caminhar está mais pesado e espaçado. A palheta que levo na boca torna o meu assobiar mais sereno e melódico, destrona qualquer melancolia causada pelos caules finos das plantas ribeirinhas que se deixam levar, hirtos, numa bela dança pelo sopro do vento norte a galope. O terreno é acidentado. Na verdade, ainda não tive tempo para o pavimentar. Está assim desde o dia em que enfim…
No horizonte o sol parecia um quarto de laranja cortada pelo telhado da nossa velha cabana que nunca cheguei a terminar. Dói só de olhar. As memórias de um Amor vivem aqui debaixo desta cabana. Recordo-me, penosamente é um facto, de quando fugíamos de casa quando a lua cheia estava já bem no alto e os nossos pais já dormiam profundamente. Éramos dois fugitivos vigiados pelas estrelas. Dois fugitivos loucamente apaixonados, eternamente prometidos um ao outro pelos deuses que vivem nas margens deste rio. Era esta a nossa paragem. Atrelado a nós trazíamos sempre a frescura do ar deste vento que faz mover moinhos, e nos fazia mover a nós. O Pequeno barco, do velho que um dia deixou esta casa abandonada, abarcou muitas vezes connosco enquanto navegávamos nesta pequena lagoa onde o rio descansa. Nele uma vez escrevinhei com um pau o teu nome. Ainda hoje aqui está. Pensei com toda a minha inocência que isto poderia, talvez, perpetuar a nossa relação. Em vão, como sabes.
Neste alpendre desgastado, também ele, pela idade e quem sabe pela minha falta de sorte, fizemos a lua, o sol, as nuvens, e amor. Amor, pensei eu. Fui enganado por sentimentos mesquinhos que adorava sentir. Sim esses mesmos, quando te senti as entranhas que me aqueceram loucamente o coração, quando o teu toque fazia libertar em mim gemidos de prazer abrasivos como as cinzas de um grande fogo, quando o prazer evidente nos teus olhos azuis mais lindos que o mar, mais claros que o céu na primavera, mais vibrantes que o cantar de um tenor me sufocavam num oceano sem fim de paixão. Era, realmente era. Agora no alpendre só tenho a minha guitarra. Aquela que tocou, amiúde, para ti. Uma corda já se partiu e bateu-me. Ironicamente foi o que me fizeste. Partiste e ainda me esbofeteaste a alma. Infelizmente não és uma “corda” recuperável. Infelizmente? Peço desculpa, felizmente.
Ainda agora brincas comigo. Sinto-te todos os dias sobre mim a abraçar-me como se não me quisesses deixar. No outro dia estava no alpendre e julguei que me tivesses beijado. Nem aí em cima, para lá das estrelas e do cosmos misterioso, na terra onde todos vivem eternamente, me deixas em paz.
Bem, resta-me o meu passado escrito com tinta indelével que tu própria criaste, pintaste, desenhaste, rabiscaste, engendras-te. E agora os meus dentes rangem como as portas velhas, os músculos tremem como o teu cabelo em desalinho, os dedos estalam como castanholas sevilhanas, as estações do ano entram em alvoroço e turvam a água que deixaste diáfana como aljôfar.
A vontade de viver aparece serôdia, quando aparece, múltiplas vezes não chega a ser hipótese. Pois, nem eu compreendo o que digo. A minha sabedoria é cega surda e muda e vive no inverno, isso te garanto. Mas sabes, gostava de voltar a sentir que 1 mais 1 podem ser 3, e que a totalidade é maior que a soma das partes, que o impossível pode ter um “se” e que todas as situações deixam de ter um “mas”, que os rios nascem no mar, e que a lua pintámo-la nós nas noites em que os besouros pousavam na nossa cabeça como se fossem a nossa consciência. Enfim, já percebi. E se eu sorrir? Virás tu perseguir-me e beijar o meu nariz como fazias? Ou vais deixar-me energúmeno e néscio como os salmões que apanho para sustento?
Que raiva. Fazes-me sentir um sortudo na vida, e acreditar que me abandonaste aqui neste mundo cruel com Amor. Até me fazes achar que no mundo há pessoas bem piores do que eu que todos os dias lutam com a vida ao contrário do que faço por ter desistido. Porque me fazes cair em utopias e mexericos de que morreste a dizer o meu nome e me Amavas? Porquê que eu sinto que te Amo? Explica-me este deboche.

terça-feira, 7 de julho de 2009

"(Des)centralização"

O passeio alegra-se, aparentemente, com as pisadas despreocupadas dos transeuntes que navegam sobre a calçada portuguesa desgastada pela maresia. Que rica maresia. Afoga as minhas narinas da terceira idade com cheirinhos de décadas, séculos, milénios, transportados pelo vento intemporal.
As ondas batem nos rochedos típicos desta costa norte portuguesa, e soltam lindos arco-íris momentâneos. O sol brilha lá bem no azimute. O relógio de um dos bares marca precisamente a meia hora da tarde. Pouca diferença faz para um velho como eu. Uma velha criança como diz a minha única filha. Velhas só tenho as minhas memórias. Memórias que discorrem da minha visão como hologramas. Pois é…ainda te vejo a correr neste areal com o teu ar desajeitado mas encantador, o teu cabelo dourado a esvoaçar ao sabor do vento fresco da manhã, os teus olhos mais azuis que o mar mais vivos que as ondas que devoram a costa. Esses olhos que me convertiam num servo do teu coração, e me faziam venerar o amor. Essa palavra, amor. Amor que nunca entendi mas sempre senti. E daquela vez que nos sentamos naquele rochedo? Ainda lá estão pintados os nossos nomes desde do dia em que nos beijamos pela primeira vez. Recordo-me perfeitamente. Tinha eu 18 anos e tu uns meros 16 anos. Como eras linda já nessa altura. Todos te queriam até os filhos de famílias da mais nobre casta. Mas tu quiseste-me, a mim, filho dos mais pobres pescadores. Pobres mas humildes. Mas nesse dia beijaste-me na mesma. Sem pensamentos. Com coração. Os teus lábios tocaram os meus e o sabor adocicado do teu batom invadiu-me e conquistou-me.
A partir desse dia o mar passou a ser a minha casa. E aqui estou eu como faço todos os dias antes do almoço, com a tua fotografia a preto e branco no meu bolso da camisa para te sentir bem mais perto do meu envelhecido e gelado coração e para enganar-me de forma a pensar que para ti foi o mesmo que para mim. Sei que não foi, senão porque partirias?
O que é certo é que agora nada é igual. O Vento sente a tua falta, o mar já não bate nas rochas com tanto vigor como naquele dia, as gaivotas já não se pronunciam com tanta vontade, o sol já não brilha com tanta intensidade nas pálpebras dos meus olhos verdes carmesim, a areia já não é da cor do teu cabelo, e o mar passou a ser mais vivo que o teu olhar. Talvez não. Talvez no fundo seja apenas eu que sinto a tua falta. Talvez seja eu que não me perdoo por te ter deixado perecer perante a enfermidade. Por não te ter segurado a mão quando tiveste a nossa filha, o nosso milagre. Por não te ter ouvido quando murmuravas que me Amavas. Fui idiota o suficiente para me deixar levar pelas grandes coisas do mundo e não pelas coisas pequenas mas com maior importância.
E agora desejo-te aqui comigo e tenho apenas a atmosfera que já não me faz sentir seguro. Tenho aquela vontade de te ir buscar á escuridão onde te encontras, ou á luz onde vives sem mim tão fielmente. A minha vida passou de esfera emocional, á espera eterna pelo teu rosto junto ao meu, passou de felicidade exacerbada e contagiante á memória aliciante e incrédula de que um dia te verei.
Já não sei respirar. No fundo só quero parar de o fazer e partir em busca de ti e do nosso amor que desperdicei. Mas por outro lado sou feliz aqui nesta praia. Faz borbulhar em mim o prazer que nunca tive contigo, nem tão pouco nas noites que passávamos juntos ao pé da lareira da nossa casa. Agora sou mais do menos que me deixaste, sou mais ou menos aquilo que sempre quiseste que fosse, e não sou nada do que quis ser.
Está decidido! Hoje vou ser só eu e o amor que te substituiu, o meu reflexo na água.