sexta-feira, 14 de agosto de 2009

"...O que as estrelas contam..."

No outro dia vi-te sabes? Fui á praia por apreço á minha alma, e por saudade da tua. Pensei que havia uma tempestade, mas não. Aparentemente devia ser uma intempérie no meu interior. O sol iluminava as campinas circundantes. Os fetos e as heras cobriam as casas antigas no topo das dunas e sombreavam o areal com as suas formas irregulares. O vento, estranhamente, era de sul e ao tocar no meu rosto beijou-me com o aroma de mil manjericos, e a doçura do chocolate derretido por saborear. Fez-me girar a cabeça de encontro ao brilhante areal aquecido muitas vezes por nós. Recordas-te?
O caminho por entre as dunas ficava logo á esquerda. Durante muito tempo este foi mesmo o meu miradouro. Vinha para aqui ver todos os fins de tarde. As gaivotas voavam em direcção á areia fina e dourada que emana calor, tal como o meu coração por ti. Mas não, não ia ver as gaivotas, o areal, o mar ondular sobre os meus olhos tantas vezes verdes, nem sentir o calor aprazível do final de tarde. O que me trazia aqui todos os dias era a miragem que tinha de ti. Era teu espectador. Eu, o sol, e o espreitar da lua absorvente, esplendorosa, e rainha do teu ser. Ai como amava. A tua sombra aumentava á medida que caminhavas, diria eu, em direcção á bola de fogo laranja eclipsada pelo horizonte. Os teus pés ao tocar a água eram força da natureza. Criavam correntes. Eram génese de vida. A maresia era o teu vestido, e as rochas os teus adereços. Eras um só com o cenário. Eu sorria enquanto passava a mão no meu cabelo engelhado. Eras divina. Sentia-me divino contigo.
Antes podia passear contigo aí em baixo. O areal era o nosso reino e tu a minha princesa. Sentavas-te e deixavas-me silenciado. Já sabias que o meu silêncio era prelúdio de um Amor em crescimento e de uma paixão efervescente. Gostava quando te tocava. Estremecias e escondias a lágrima no canto do olho. Eu tirava-te a mão para que chorasses. Choravas o Amor que nunca tive, uma paixão que deleitava o bater do meu coração, e o desejo de teres o meu corpo e partilhares comigo a noite.
Um dia, neste mesmo mar, entraste comigo para te render ao desejo infinito de seres um só comigo. A praia era nossa. Contudo, por momentos não havia praia. Eras tu, eu, e a nossa união de corpo e alma. O prazer que sentimos fazia mover cada pequeno músculo do nosso corpo, e as nossas veias latejavam quando beijavas o meu corpo salgado. As tuas mãos entrelaçaram-se nas minhas e tocaste o meu corpo como se fosse a última vez. Mal eu sabia que era.
Agora não passo disto. Um mero contador de histórias sobre o maior Amor de todos os tempos que acabou. Um néscio e serôdio apaixonado. O teu observador.
Tudo que reparo agora é na tua falta de equilíbrio. Tantas vezes foram as que te dei a mão para não caíres. Outras tantas já te tirei do areal onde caias com frequência. E agora sempre que cais não sais do chão. Mas reconheço esse olhar. Esse toque insubstituível será sempre meu. Sinto-o.
Estás mais fraca sem mim porque te transporto comigo. Deste-te e não te devolvi.
O que tu não sabes é que hoje tudo mudou. Hoje quero sentir-te. Hoje quero beijar os teus lábios e senti-los afogarem-se em lágrimas de alegria. Quero que entres no mar comigo e me tenhas só teu. Quero a minha vida e a tua a deslizar como gotas de suor dos nossos corpos.
Desço as dunas em passo lento. Tu paras ao ver-me. Se calhar não me reconheces. Esta é a imagem mais linda que tenho de ti. O Sol bate-me nos olhos e tudo que vejo é um espectro brilhante com a tua silhueta. As tuas lágrimas voltaram a cair. Hoje limpo-tas de novo. Agora fecha os olhos e sente-me.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

"Crónicas de idade avançada"

Então escuta bem. Já tenho a tua foto no bolso da camisa comida pelas traças. No meu passo envelhecido, caquéctico, tento desesperadamente enfrentar as memórias, nuas e cruas, que lutam, moem, rasgam contra a minha vontade de alcançar aquele areal onde criámos a razão das nossas vidas, e a nossa maior fraqueza. Olho firmemente o horizonte. Era aqui que o nosso Amor era criado, recitado, cantado e aplaudido pelos deuses. As rochas típicas do litoral norte português foram muitas vezes a canoa que nos fez sonhar mais alto e mais longe, que nos fez acreditar num sempre verdadeiro, e num Amor crepitante de desejo e paixão.
Abandonaste-me, e ainda por cima levas-te contigo a minha alma. Deixaste-me só. Perdido. Desfeito. Mergulhado numa miríade de sentimentos afogados neste mar e maresia que me cortam, recortam, desfalcam, abalroam, desde desse dia.
A minha felicidade era quando largavas a minha mão ao fim da tarde e corrias pelo areal de lés a lés, desafiando o vento contrário do norte, só para sentir o teu cabelo ao vento. E eu, qual apaixonado, via-te com olhar atento, tão brilhante como aljôfar, com o cabelo em gaforina, e o coração a bombear a pureza apócrifa do Amor eterno. Ainda hoje penso, escamoteado, que apesar da velhice comprovada pelas rugas e a pele queimada pelo sol, vives dentro de mim, corres nas minhas veias. Pura ilusão. Miragem de tempos antigos.
E as nossas noites nas dunas? Cheirávamos a maresia, sentíamos o ar nocturno, imaculado, salgado, tocar os nossos corpos abraçados ao ritmo da ondulação badalada com sulcos irregulares, respirávamos essa paixão que emanávamos até as estrelas sibilantes e bebíamos da lua prateada nos nossos lábios que aqueciam até os corações mais gelados.
Mas hoje estou aqui para dar o passo em frente. Estou aqui para te dizer de joelhos, doridos pelo mais de meio século de vida, que quero a tua alma e a minha de volta. Quero que me beijes, quero tocar em cada poro exsudado por mim em ti. Quero-te dizer que passe o tempo que passar, estas mãos que trabalharam os campos deste país, que nos sustentaram, este corpo que te tocou infinitas vezes com a volúpia ardente, esta paixão que provocou fremitação quer-te perdida de amores. Isso, amores. Nunca entendi porquê que me deixaste, ou melhor porquê que o Amor nunca me deixou. Mas hoje sabes que ainda te Amo. Hoje vês os meus olhos verdes á luz do sol brilhantes como os dos meninos, e o meu coração já sabe que tudo o que me deixaste não foi mágoa nem ardores súbitos e frios na coluna, mas sim, a esperança de um dia te ter outra vez.