terça-feira, 7 de julho de 2009

"(Des)centralização"

O passeio alegra-se, aparentemente, com as pisadas despreocupadas dos transeuntes que navegam sobre a calçada portuguesa desgastada pela maresia. Que rica maresia. Afoga as minhas narinas da terceira idade com cheirinhos de décadas, séculos, milénios, transportados pelo vento intemporal.
As ondas batem nos rochedos típicos desta costa norte portuguesa, e soltam lindos arco-íris momentâneos. O sol brilha lá bem no azimute. O relógio de um dos bares marca precisamente a meia hora da tarde. Pouca diferença faz para um velho como eu. Uma velha criança como diz a minha única filha. Velhas só tenho as minhas memórias. Memórias que discorrem da minha visão como hologramas. Pois é…ainda te vejo a correr neste areal com o teu ar desajeitado mas encantador, o teu cabelo dourado a esvoaçar ao sabor do vento fresco da manhã, os teus olhos mais azuis que o mar mais vivos que as ondas que devoram a costa. Esses olhos que me convertiam num servo do teu coração, e me faziam venerar o amor. Essa palavra, amor. Amor que nunca entendi mas sempre senti. E daquela vez que nos sentamos naquele rochedo? Ainda lá estão pintados os nossos nomes desde do dia em que nos beijamos pela primeira vez. Recordo-me perfeitamente. Tinha eu 18 anos e tu uns meros 16 anos. Como eras linda já nessa altura. Todos te queriam até os filhos de famílias da mais nobre casta. Mas tu quiseste-me, a mim, filho dos mais pobres pescadores. Pobres mas humildes. Mas nesse dia beijaste-me na mesma. Sem pensamentos. Com coração. Os teus lábios tocaram os meus e o sabor adocicado do teu batom invadiu-me e conquistou-me.
A partir desse dia o mar passou a ser a minha casa. E aqui estou eu como faço todos os dias antes do almoço, com a tua fotografia a preto e branco no meu bolso da camisa para te sentir bem mais perto do meu envelhecido e gelado coração e para enganar-me de forma a pensar que para ti foi o mesmo que para mim. Sei que não foi, senão porque partirias?
O que é certo é que agora nada é igual. O Vento sente a tua falta, o mar já não bate nas rochas com tanto vigor como naquele dia, as gaivotas já não se pronunciam com tanta vontade, o sol já não brilha com tanta intensidade nas pálpebras dos meus olhos verdes carmesim, a areia já não é da cor do teu cabelo, e o mar passou a ser mais vivo que o teu olhar. Talvez não. Talvez no fundo seja apenas eu que sinto a tua falta. Talvez seja eu que não me perdoo por te ter deixado perecer perante a enfermidade. Por não te ter segurado a mão quando tiveste a nossa filha, o nosso milagre. Por não te ter ouvido quando murmuravas que me Amavas. Fui idiota o suficiente para me deixar levar pelas grandes coisas do mundo e não pelas coisas pequenas mas com maior importância.
E agora desejo-te aqui comigo e tenho apenas a atmosfera que já não me faz sentir seguro. Tenho aquela vontade de te ir buscar á escuridão onde te encontras, ou á luz onde vives sem mim tão fielmente. A minha vida passou de esfera emocional, á espera eterna pelo teu rosto junto ao meu, passou de felicidade exacerbada e contagiante á memória aliciante e incrédula de que um dia te verei.
Já não sei respirar. No fundo só quero parar de o fazer e partir em busca de ti e do nosso amor que desperdicei. Mas por outro lado sou feliz aqui nesta praia. Faz borbulhar em mim o prazer que nunca tive contigo, nem tão pouco nas noites que passávamos juntos ao pé da lareira da nossa casa. Agora sou mais do menos que me deixaste, sou mais ou menos aquilo que sempre quiseste que fosse, e não sou nada do que quis ser.
Está decidido! Hoje vou ser só eu e o amor que te substituiu, o meu reflexo na água.

14 comentários:

Cláudia disse...

Pk esta preferência em falar na voz de alguém da terceira idade???

E que ja nao é primeiro texto que aparece assim??

*

Mara disse...

«E aqui estou eu como faço todos os dias antes do almoço, com a tua fotografia a preto e branco no meu bolso da camisa para te sentir bem mais perto do meu envelhecido e gelado coração e para enganar-me de forma a pensar que para ti foi o mesmo que para mim. Sei que não foi, senão porque partirias?»

podia bem dizer isto a alguém.
a ausência de quem amamos mata

beijinho Diogo

gostei muito

Mara disse...

Muito obrigado Diogo ^^
quanto ao teu abraço só quando o vir, o que é raro(espero que tenhas percebido). mas não te preocupes que não tocaste em assunto nenhum delicado, mas essa história já está há muito tempo encerrada para mim ;)
mas continuamos amigos! isso sim =)
beijinho

Mafalda disse...

Estou de volta, e adorei este teu texto :)

Melhor adoro essa tua maneira de escrever.

Claudia disse...

curioso, axu msm bastante interessante esta forma de expressão, exprimir o que sentimos na pele de alguém que o diria...

onde pára o teu cansaço??!!!

:)

Claudia disse...

"Essa palavra, amor. Amor que nunca entendi mas sempre senti."

"Mas nesse dia beijaste-me na mesma. Sem pensamentos. Com coração. Os teus lábios tocaram os meus e o sabor adocicado do teu batom invadiu-me e conquistou-me."

"E aqui estou eu como faço todos os dias antes do almoço, com a tua fotografia a preto e branco no meu bolso da camisa para te sentir bem mais perto do meu envelhecido e gelado coração e para enganar-me de forma a pensar que para ti foi o mesmo que para mim. Sei que não foi, senão porque partirias?"

"Tenho aquela vontade de te ir buscar á escuridão onde te encontras, ou á luz onde vives sem mim tão fielmente."

"Hoje vou ser só eu e o amor que te substituiu, o meu reflexo na água. "

Claudia disse...

Este texto é bastante rico, cheio de sensações, pensamentos, recordaçoes, desejos, tudo numa introspecção de um viúvo que parece estar entre o amor que perdeu mas nao soube viver e o tempo que dispõe agora sozinho e nao sabe viver.

Talvez se cada um de nós nos puséssemos na pele deste idoso percebessemos como existem coisas que embora parecendo insignificantes com o tempo se tornam pérolas no colar mais belo da nossa vida.

Talvez devessemos todos escrever este texto para nao perdemos coisas que sabemos que são importantes e negligentemente desperdiçamos.

Sim, este texto é muito rico e fez-me pensar em várias coisas, pois está cheio de sentidos em diferentes direcçoes que podem levar a variados raciocineos, teria mt que escrever aqui para discutir contigo.

M as fico por aqui, mas ao lê-lo senti-me levemente na pele de quem ama, e não sabe amar, na pele de quem ama e não foi amado, na pele de quem ama e é inseguro, na pele de quem ama e sabe no que o amor o transformou, na pele de quem ama e não sabe se é melhor amar-se sozinho ou extravazar esse amor a outro alguém, na pele de quem tem os papeis trocados nas metamorfoses da vida, não a ama a si quando deve amar e nao ama o outro quando o deveria ter feito e chora por esta dupla falha. Mas na pele de alguém capaz de reflectir e recordar, e consigo tentar no fim encontrar um consenso pois o erro é que permite a real valorização :)

desculpa alongar me :D

Claudia disse...

Ao ler este texto parece-me realmente ver um autor cansado.... Com o proprio espirito multipartido e à deriva remoendo dentro de si multiplas controvérsias devido a factos intrincados naquilo que é e que vive, e isso transparece no texto, naquilo que foi sendo escrito do inicio ao fim na frequente variação de questões, pensamentos, hipoteses,idealizações, e antagonismos...

Não quero se uma analista, não, mas sinto-me um pouco eu ao escrever alguns poemas meus... Quando olho e vejo este tipo de discurso e vejo a mim propria perplexa com varias questões que se acumulam no meu intimo :)

so por isso estou a realçar...

nao sei e se me estou a exprimir adequadamente ?!

:D

Obrigado, pensei e reflecti sobre coisas mt importantes, e isso é uma das vitórias que deve passar algo escrito, neo meu ponto de vista :)

Hum o teu polo esta a sofrer uma influencia do meu...LOLOL

Mafalda disse...

"Hoje vou ser só eu e o amor que te substituiu, o meu reflexo na água."

Fscinas-me em altura.

Depois tens que me dar o título :)

CLaudia disse...

Eu logo vi :)

Não somos assim tão diferentes e para mim é quase um desafio ler te nas entrelinhas nao te conhecendo :)

Que se passa contigo???


Tenta encontrar te a ti proprio:)

o estado em que tas agora dá me a mim mt gozo algo masoquista mas permite perceber até onde vão os nossos limites... as vezes torna-se um estado permanente...

Desafiote a saber se o teu polo esta ou nao intacto... hehehehehe

B disse...

"Pois é…ainda te vejo a correr neste areal com o teu ar desajeitado mas encantador, o teu cabelo dourado a esvoaçar ao sabor do vento fresco da manhã, os teus olhos mais azuis que o mar mais vivos que as ondas que devoram a costa. Esses olhos que me convertiam num servo do teu coração, e me faziam venerar o amor. Essa palavra, amor. Amor que nunca entendi mas sempre senti."

Gostei muito desta parte, mesmooo! :D (e do resto do texto tbm, mas desta em particular =P)


beijinhos *

B disse...

Tu escreves tão e tão bem =')

Anónimo disse...

Em pisadas largas e pesadas caminhas-te sem fôlego no meio de uma floresta que apenas te poderia dar a paz tépida de uma feliz manhã de primavera, e mesmo assim optas-te por caminhar sem medo no interior dela.
Falar na voz de outrem o que não somos capaz de dizer apenas demonstra a dor pesada no teu interior e falta de confiança para falares na 1ª pessoa.
Agora mesmo não tendo jeito para escrever deixo aqui uma pequena historia falando de ti ;) :
E lá ia ele, na floresta, com medo da sua própria sombra tentando achar o sentido na vida em coisas fúteis que tinha dentro da sua mochila… dentro dela tinha uma bússola e uma garrafa de água vazia. Quando começou a anoitecer e a lua a desvendar o sua luz ele começou a entrar em pânico, sem comida nem água, apenas lhe restando uma bússola e uma garrafa de água vazia… Pensava ele no meio da floresta que uma bússola que lhe ia dar apoio suficiente para ele desvendar o sentido de acordar ali no meio de uma floresta escura e assustadora.
Se ele fosse um velho, com a sua observação madura entenderia que o caminho dele não seria aquele, que uma simples bússola de nada altera o seu destino no meio em que ele foi inserido e que faz parte dele… Apenas as suas falas de idoso o consolam… Mas iria entender que se parasse um pouco de andar em volta do mato denso que, se ele se sentasse nas raízes de uma árvore cortada por um lenhador que aprenderia muito mais falando com essa árvore.
As árvores têm tanta vida ou mais que ele, apesar de ele não o entender e de ela não se poder mexer, ela sempre se deixou ser cortada, para o lenhador poder aquecer o seu lar para que continue a viver… No entanto era esse o destino da árvore, dar a sua vida por um bem maior, para aquecer a vida de quem também faz parte dela…
No silêncio da floresta ele acabou por repousar no leito de umas folhas caídas ao lado da árvore que deu a sua vida para aquecer outem . Acabou então por na tépida noite deixar cair a bússola de suas mãos e acabou por adormecer e ter um sonho, foi capaz de falar com a árvore cortada… A sua conversa foi longa, ele fazia lhe perguntas infinitamente grandes que não tendo sentido a árvore permanecia em silêncio. Quando ele acabou as suas perguntas a árvore explicou-lhe, o que tu procuras tu encontras te numa tarde de sol ao pé da praia, essa era a tua porta para o teu destino, mas no entanto tu optas te por vaguear nesta floresta com uma bússola que nunca te levará para fora desta floresta, tal como tu toda a sociedade procura a razão da sua existência e remói-se querendo não viver a vida que foi escolhida pela mesma…...

(esta história nunca terá um fim, por “ele” continuará a vaguear e nunca saberá tudo o que a árvore lhe poderia ter ensinado)

Claudisabel disse...

hum nao sei porquê mas acho que irias apreciar este texto de MIA COUTO postado neste blogue... Olha vai lá ver :)

beijinhus